Ouvindo o Space Liberdade

    Ouvindo o Space Liberdade (bolsonaristas) cheguei a algumas conclusões:
 
    Aquelas pessoas NÃO são idiotas ou ignorantes. Parte dessa percepção vem do fato de que nós desconhecemos os meandros do universo do qual elas fazem parte. Não falo de alguma realidade alternativa (embora isso exista), o fato é que existe substância lógica no universo bolsonarista – e essa é a boa notícia. Não estamos falando de dezenas de milhões de malucos, assim como não são malucas as pessoas que acreditam em misticismos. No fundo, todos seguimos decisões lógicas com base na nossa própria percepção da realidade.
 
    Antes de tudo é necessário compreender quais são os elementos que fazem com que uma parte significativa da sociedade tenha uma percepção muito diferente da nossa sobre os mesmos fatos, tão diferente a ponto de considerarmos, de imediato, tal perspectiva como mera dissonância cognitiva.
 
    O julgamento que fazemos daquilo que acontece a nossa volta deriva da nossa capacidade de interpretar os fatos a partir da nossa própria perspectiva. O detalhe é que na sede de tentar compreender aquilo que parece não fazer sentido e que afeta a nossa capacidade de ação enquanto agentes políticos – sim, militantes também são agentes políticos – por vezes esquecemos que tal interpretação depende, sobretudo, da forma como os acontecimentos nos são apresentados.
 
    Desde de muito antes da eleição de 2018 que bolsonaristas e mblistas não bebem da mesma fonte, até porque, o que hoje chamamos de bolsonarismo há apenas alguns anos era visto apenas como parte da classe média brasileira – peça essencial do motor econômico e há muito relegada pela elite – que iniciava um levante, a princípio tímido, contra toda sorte de injustiça e impunidade que impera no Brasil desde os tempos de Cabral.
 
    Não vou me estender discorrendo sobre a origem do MBL, pois já existe documentário que trata exatamente disso com a devida profundidade. O que nos interessa aqui é que o MBL, desde a concepção, é um projeto que parte da premissa de que a mudança no âmbito institucional decorre da capacidade de organização e ação de agentes agrupados em torno de um projeto de poder, diferindo, portanto, da natureza amorfa e despolitizada de uma classe média embriagada pelo caldo cultural popular e pela ideia de que o direito adquirido independe do engajamento político como elemento de transformação da realidade.
 
    É de fundamental importância que compreendamos a natureza de ambos, pois somente assim é possível entender como um indivíduo simples como o Bolsonaro pode ser paradoxalmente interpretado de forma tão elástica a depender do prisma sob o qual é observado.
 
    Sob a óptica bolsonarista, Bolsonaro não é um político que cometeu erros, tampouco um representante eleito que traiu as próprias pautas. Sequer se trata de um indivíduo que vendeu moralidade e entregou promiscuidade. Para o bolsonarismo, na verdade, tudo isso pouco importa. O "grande pelicano" é simpático demais para integrar o ambiente apático da política, rústico demais para os carpetes do Palácio e simples demais para a complexidade intrínseca à institucionalidade. Bolsonaro é um homem do povo, ou seja, a única coisa que importa é que ele não é um agente político – pois é, essas pessoas não veem o Bolsonaro como um político.
 
    A pergunta que fica é: como é possível que um político fisiológico com 28 anos de Congresso seja visto como outsider?
 
    A resposta para esta pergunta parece residir na natureza do brasileiro médio.
 
    Como posto anteriormente, o bolsonarismo não nasce como um movimento político, mas como um levante da classe média que antecede a ascensão do próprio Bolsonaro, ainda nas jornadas de junho de 2013 – conforme retratado na edição 05 da revista Valete.
 
    Bolsonaro, como bom malandro que é, percebendo o ambiente que surgia prontamente se vende como um legítimo representante dos anseios daquela massa. Não demorou muito até que fosse adotado pelo público e transformado num agente catalisador da esperança que nascia da perspectiva de renovação pós-impeachment da Dilma Rousseff.
 
    A verdade é que essas pessoas, que nós chamamos de bolsonaristas, nunca se interessaram por política. Ledo engano acreditar que o brasileiro trocou a paixão pelo futebol pela política, isso nunca aconteceu – e nem vai – pois iria contra a natureza apolítica do brasileiro médio. O estado natural dessas pessoas remete a uma mistura de melancolia, revolta e esperança – quase que como um elemento de fé – dada a ausência de um plano capaz de materializar os seus anseios.
 
    Bolsonaro é um mero catalisador desse sentimento, portanto, seu histórico político é totalmente ignorado, pois a imagem do Bolsonaro como símbolo surge a partir do momento em que ele se apropria desse sentimento revolucionário – sim, não são conservadores.
 
    Nenhuma estratégia que exija dessas pessoas uma capacidade de compreensão do game político será capaz de tirá-las da cracolândia do bolsonarismo, pois o que as prende ao bolsonarismo não é a política. Tentar recuperar essas pessoas explorando as vulnerabilidades do Bolsonaro no campo político é como querer tratar um paciente com COVID com cloroquina; não vai funcionar.
 
    Se explorar as vulnerabilidades políticas do "mito" é inútil, explorar dele a deficiência moral é tão inútil quanto.
 
    Probidade, competência e integridade são qualidades imperativas para o exercício da atividade política, mas se você está numa guerra onde as únicas regras são a sua sobrevivência e a vitória, tais "detalhes" passam a ser irrelevantes; e este é o caso do Bolsonaro, um "mito" que luta bravamente pela própria sobrevivência e pela vitória; mas... o que seria essa vitória? Afinal, Bolsonaro já foi presidente e, a bem da verdade, ele só acumulou derrotas.
 
    A vitória Bolsonarista não é política – é importante não perder isso de perspectiva. Tal qual numa partida de futebol, pouco importa os efeitos práticos de terminar a partida com mais ou menos gols. O que importa é a ideia de que é possível "vencer" e ter a vitória reconhecida, inclusive pelos adversários.
 
    As "mitadas" do Bolsonaro, as espetaculosas motociatas, as falas agressivas dirigidas às autoridades, da negação do óbvio ao ódio à imprensa. Todos esses elementos são vitórias, e isso é TUDO que importa. Não é sobre a economia, não é sobre a segurança pública, não é sobre a educação, saúde... dane-se tudo isso. A vitória se materializa na ideia de que o porta-voz escolhido por aquele movimento de massa reproduz os gestos de rebeldia que dele são próprios.
 
    Talvez a reabilitação mais promissora parta do princípio de que é necessário, antes de qualquer coisa, convencer essas pessoas de que a arena política é o único meio de ação possível, e não um mero picadeiro. É preciso que redirecionemos a esperança dessas pessoas para a política como meio de transformação. O grande desafio, porém, é descobrir como ter a legitimidade necessária para tal. Não basta tentar emular o bolsonarismo, pois ainda que nos cubramos com o manto verde e amarelo do discurso fácil, nosso rabo político continuará para fora – bumbum livre joke – e essa é a má notícia.
 
    Se alguém quiser continuar essa reflexão daqui, fique a vontade. Talvez tenha mais sorte do que eu em encontrar uma resposta. Eu deixo aqui posta a pergunta: como trazer essas pessoas para dentro do game político? Se é que isso é possível.

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